O artesão digital e o conteúdo produzido por humanos
Precisamos sair da era da automação feita para as máquinas (e empresas)
Enquanto eu pensava a respeito de um novo projeto, Connor Hayes, vice-presidente de produto para IA generativa da Meta, dava uma entrevista para o Financial Times dizendo o seguinte sobre a inserção de milhares (ou milhões) de usuários e conteúdos produzidos por Inteligência Artificial nas plataformas da empresa: “Esperamos que essas IAs coexistam em nossas plataformas, como acontece com contas de usuários. Eles terão biografias e fotos de perfil, além de gerar e compartilhar conteúdos criados pela IA... É para onde vemos isso indo”.
Esse papo marqueteiro do Hayes, meio que tentando justificar e vender o uso de IA pela Meta, tem um motivo: apesar da insistência das big techs, diversos estudos — como esse, encabeçado por um pessoal do MIT — vem apontando que nós, humanos, preferimos conteúdos produzidos por gente como a gente e não por máquinas.
E assim, eu sei que os resultados dessas pesquisas podem até parecer estranhos, principalmente quando olhamos para nós mesmos, 4º país que mais usa ChatGPT no mundo. No entanto, para entender essa dicotomia é preciso diferenciar o que é um processo de produção do que é uma vontade.
Definitivamente nós não nos sentimos à vontade com tudo que a IA produz, porém, somos cada vez mais obrigados a utilizar e conviver com seus resultados.
O tal do meu novo projeto tem a ver com tudo isso, mas, antes de falar dele, vou precisar voltar um pouco no tempo.
O processo de produção do capital
Ainda no século XIX, Karl Marx publicava o primeiro livro de O Capital, onde abordava “O processo de produção do capital”. Um importante clássico… queira você ou não.
No Décimo terceiro capítulo de O Capital, o alemão escreveu o seguinte: “vimos como a maquinaria suprime a cooperação que repousa no artesanato e a manufatura que repousa na divisão do trabalho artesanal. Um exemplo da primeira espécie é a máquina de ceifar, que substitui a cooperação de ceifeiros”.
Em resumo: primeiro trabalhamos sozinhos e atingimos um certo resultado. Depois trabalhamos em conjunto e ampliamos bastante esse resultado, ainda para um benefício coletivo.
Mais tarde chegam as ferramentas de automação, que a princípio fazem com que trabalhemos melhor, por menos tempo, liberando horas do nosso dia.
Acontece que é pouco depois dessa parte da história onde algo sai do controle e o que seria sinônimo de sossego vira desespero e desemprego.
Isso, claro, menos para os donos das tais ferramentas de automação que agora faturam com suas máquinas e com o baixo custo do exército industrial de reserva.
Foi desse jeito com as máquinas de ceifar e também com a produção de conteúdo para a internet.
Computação feita a mão
Se por um lado, os computadores e até a internet surgiram por conta de vontades e investimentos dos militares estadunidenses, a web comercial e os computadores pessoais são ideias que brotaram das mãos de anarquistas e hippies com espírito hacker.
Tudo com bastante contribuição entre pessoas interessadas em levar as novas tecnologias para outras pessoas.
O problema é que se por um lado a informática tomou forma durante o pós-guerra, com vários grupos da contracultura aprendendo a utilizar as novas tecnologias para se comunicar e expandir as possibilidades das artes, por outro ela se popularizou junto do crescimento do neoliberalismo.
Agora a automação tecnológica serve cada vez menos aos humanos e cada vez mais às empresas.
A automatização é um grau baixo de perfeição técnica
Gilbert Simondon, um dos principais pesquisadores e filósofos da técnica, deixou claro em sua obra dois pontos bastante relevantes para esse texto: (1) objetos técnicos são mediadores entre o homem e a natureza e (2) a automatização é um grau baixo de perfeição técnica.
Através da técnica (informática), criamos mundos virtuais, enciclopédias eletrônicas, redes sociais e ambientes capazes de dar voz às pessoas que antes não conseguiam se fazer ouvidas.
Com isso, durante algum tempo a internet foi uma grande ferramenta de entretenimento, comunicação e aprendizado.
Porém, para gerar uma automatização algorítmica cada vez mais ampla — dos resultados de busca do Google até a entrega de comida por aplicativo — , formatamos o nosso jeito de nos comunicar, relacionar, alimentar e até se deslocar na cidade de uma maneira que facilitasse o entendimento das máquinas.
Tudo isso alimentou um exército de sistemas de inteligência artificial que, repetindo Simondon, só entrega, no máximo, um grau baixo de perfeição técnica, porém, capaz de roubar empregos e nivelar por baixo a nossa experiência como humanos.
A importância (atual) do conteúdo produzido por humanos
Para combater parte de todo esse problema, a princípio eu acreditava que deveríamos voltar a ter uma espécie de artesanato eletrônico ou artesanato digital, como existiu ali entre os anos 80 e a primeira metade dos anos 2000.
Era preciso dar alguns passos atrás.
Acontece que o termo “artesanato” tem uma grande chance de virar branding. Marketing puro.
Pense em quantos produtos “feitos à mão” você já encontrou sendo vendidos por aí como linha de luxo, ou orgânica, de grandes empresas.
O mesmo não acontece com a palavra artesão.
O artesão é o produtor, mais do que o produto.
Penso que precisamos de mais artesãos e artesãs digitais, que produzam conteúdo para humanos e não para alimentar algoritmos ou ensinar máquinas.
E isso não quer dizer de forma alguma abandonar a tecnologia de hoje.
Entendo que existem maneiras de sites e perfis de redes sociais serem melhor encontrados na internet atual. Não é problema algum entender e colocar em prática as técnicas que facilitem isso.
Mas precisamos produzir apenas no formato estipulado pelas máquinas? Precisamos deixar na mão da IA a criação de textos e imagens? Precisamos seguir o ritmo de produção ditado pelas big techs? Precisamos nivelar por baixo aquilo que podemos fazer?
Sei que existem problemas em rotular tudo como conteúdo, mas não me refiro aqui a reduzir um livro, disco, série ou filme a isso. Estou falando de posts, reels, conteúdo produzido para sites ou perfis de redes sociais.
Acredito que pode ser interessante voltarmos a ver mais canais de dicas, sites sobre cultura pop, perfis com resenhas de jogos e filmes, blogs de música, mais da internet com conteúdo produzido por humanos.
E, por fim, se o produto feito por artesãos costuma ser mais valorizado do que aquele feito pela indústria, por que o mesmo não se repetiria nesse caso?
Dito tudo isso, o meu novo projeto é o cpHu, o site/perfil/movimento Conteúdo Produzido por Humanos. Um lugar com textos, vídeos e tudo mais sobre cotidiano, cultura pop e tecnologia de pessoas para pessoas.
Dê uma passadinha por lá depois :)